19 agosto 2021

Lembrança eterna

Nunca me esquecerei de um casal que vi brigando, há dez anos, num barzinho no centro da cidade. A mocinha estava tão triste, como se um pedaço da alma dela faltasse; o rapaz  não demonstrava se importar com o pesar que presenciava, mas em pouco tempo saiu do estabelecimento chorando também. Não tenho o costume de prestar atenção em desconhecidos, mas acabei capturada pela cena pouco comum: tão jovens, mas com feições tão sérias. Ambos triste, cada um à sua maneira.
O bar estava lotado e barulhento naquele dia: sons de talheres, conversas simultâneas e automóveis passando pela rua. Só aquela mesa permanecia em silêncio, quase alheia à toda vida que pulsava ali. Aqueles dois destoavam do ambiente. Acho que foi por isso que, inicialmente, empenhei meu tempo em olhá-los. Devem ter ficado cerca de 20 minutos sem se falar, até que o menino falou algo que não pude compreender.  Fiquei quase aliviada quando percebi um início de conversa. Mesmo sem conhecê-los, torci para que o diálogo pudesse melhorar aquelas expressões tão infelizes. 
Em breves minutos, porém, tudo pareceu ficar definitivamente pior. Os ânimos se exaltaram: ele começou a gritar com ela, ela respondeu também em voz alta e, de repente, o bar cheio se juntou a mim contemplando o casal em sua desavença. Pude ouvir a moça dizendo que o rapaz era o que a segurava ao mundo e, por um segundo, senti um medo muito grande. Temi profundamente aquele tipo de entrega. E de responsabilidade. Me perdi refletindo sobre colocar nas mãos de alguém uma parte tão grande do próprio espírito e não consegui mais acompanhar o desenrolar da acalorada discussão. Quando dei por mim, o rapaz já se levantava da cadeira em prantos, jogava sobre a mesa algo que parecia uma nota de dinheiro e partia, sem olhar pra trás. Partiu como quem não pretendia voltar ao bar ou à vida da menina, que ficou ali, sozinha. Mas era como se nem estivesse.
De frente pra mim, mas sem me ver - ou mesmo saber da minha existência -, a menina permaneceu imóvel por um tempo que não consegui calcular. Transbordava-se de lágrimas silenciosas e insistentes, lágrimas essas que em nenhum momento se preocupou em secar: ela estava tão ferida que não havia forças para omitir a dor. Pra que? Pra quem?
Fiquei olhando pra ela por todo tempo que esteve no bar. Era tão bonita, transparecia ser uma pessoa amorosa e sensível, pena que infelizmente estava esfacelada. Pensei em ir até ela, me oferecer pra conversar, ouvir, dar qualquer suporte, mas tudo parecia tão pouco, tão superficial. Nada que eu dissesse ou fizesse remendaria aquela alma, devolveria o pedaço que, então, indubitavelmente lhe faltava.
Antes que eu me decidisse por me aproximar ou não, a menina levantou-se e também partiu. No entanto, ela nunca me abandonou: o sembante dela se impregnou em mim e nunca pude esquecê-lo completamente. Dez anos se passaram e talvez nem aquela moça se lembre do episódio, num bar do centro. Talvez esteja casada, tido filhos, se mudado para outro país, se tornado freira, morrido, quem sabe, já que nada mais a prenderia ao mundo. Talvez tenha reatado com o rapaz que a largou no bar, num momento de tanta fragilidade. Mas eu, por qualquer motivo, não deixo de lembrar.  Há uma década aquele rosto molhado por uma torrente de lágrimas é inapagável em mim; por outras décadas, seguirá nítido em todas as vezes que eu fechar os olhos. Nunca me esquecerei.

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