08 julho 2021

10 anos depois - Fogo e saudade: réplica da terceira pessoa do singular

o vazio não é companhia e talvez nunca tenha sido, mas provavelmente é o único que ainda resiste ai, ao seu redor. antes da minha desistência, eu deveria ter arrancado suas cortinas do trilho, permitido que a luz do sol entrasse em seu quarto quando quisesse. na lista de tantas coisas que te faltam, já seria possível tirar a deficiência de vitamina D. sua televisão, ligada por vício, hoje talvez esteja quebrada, mas os vestígios dos ecos de tantos anos de sintonia são inapagáveis: que imagens ou sons esse aparelho velho poderia produzir para amenizar as pequenas e repetitivas fisgadas que se espalharam da nuca para o resto do seu corpo todo?
são anos longe de você, mas posso visualizar e descrever o cenário: um copo de café frio e o resto de alguns cigarros apagados ao lado da cama. uma dieta sofrível, a derrota estampada no rosto exausto, o desconforto por carregar os próprios ossos. no canto do quarto, ao alcance da vista, um porta-retrato empoeirado trazendo uma foto minha - meio lenitivo, meio veneno. sorridente, feliz, esperançosa... torturantemente viva no alto da sua cômoda: minha fotografia que você se recusa a destruir é o último pedaço meu que te sobra e é justamente esse refugo do que fui há tanto anos que assume a importante missão de te assombrar e fazer pagar. o olhar vidrado que te seduz não é o meu; nenhuma palavra minha sairá dessa boca de papel; o amor que você busca no escuro já não sou eu. essa nuvem de poeira que te visita é só saudade. teria outro nome?
eu sei que a sujeira que fica no ar ainda guarda minha silhueta... eu sei que o espectro luminoso que deixei, pairando no nada, te faz procurar os tantos pedaços que faltam de mim... no seu sonho mais impossível, minha mão ainda percorre a sua e meu perfume invade suas narinas sensíveis à poeira. a lembrança de mim será para sempre como uma alergia severa a um objeto pelo qual se nutre profunda obsessão: sem cura, sem medicação, apenas um constante processo de se habituar ao desconforto. se habituar a ser, no máximo, uma sombra do que já foi um dia. 
sofrer não vai adiantar: eu não voltarei, o frio não se dissipará, a paz seguirá intangível porque eu levei a paz. eu era sua paz.
e toda vez que a dor for lancinante, toda vez que você tiver certeza que o sofrimento vai te sobrepujar e rebentar seu corpo em vários pedaços, saiba: mesmo optando por não assumir, você já me causou pesar pior.  muita coisa já maculou meu peito assim. só fogo machuca dessa forma. fogo, saudade e aquele fel mascarado de afeto que você dizia sentir por mim.

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