11 julho 2021

Dança desconexa: a prole de Nyx

Alguns mortais não merecem o presente que é a Noite! A Noite, que nasce do meu útero, é um lenitivo. A Noite, que nasce do meu útero, é uma pausa incontornável para a constante exibição desnecessária do Deus-Sol. Há milênios, eu teço a Noite; há milênios, eu meço forças com essa estrela flamejante por amor à Terra. 
Sei que os raios solares permitem a vida, fazem as plantas crescerem, iluminam o desejo de permanência. Eu sei melhor do que ninguém, afinal, eu sou a vida. Mas muitos de vocês se esquecem que sem a noite, que eu pari, esse mesmo sol mataria a todos, queimaria as plantas e carbonizaria qualquer coisa até as cinzas. O sol cria e também destrói! E eu pari a Noite para que a sobrevivência fosse possível. 
Se o sol é estático e espera nossa volta ao seu redor, a Noite dança! Dança porque dançar é seu jeito de amar ao mundo, de curar as ardências e queimaduras solares. E eu danço com ela, minha filha mais amada, porque dançar é meu jeito de amá-la de volta, de valorizar seu difícil trabalho de cicatrizar tantas feridas. Quando ela renasce, todo dia, ora  inspira a festa, ora inspira o descanso! E só festeja ou descansa com ela quem sente a vida pulsando dentro de si. 
Alguns mortais não merecem o presente que é a Noite! Por vezes, resumem a existência dela às pequenezas, às paisagens sombrias, às buscas vazias, às altas gargalhadas pouco compreensivas, aos rostos ignotos que se movem num ritmo incompreensível... E foi por isso que também pari a Solidão, minha filha mais necessária: ela não dança, mas também sabe ser curativa, protetora. Quando a Música  desordena, quando os Ponteiros encurralam, quando as Horas perseguem, quando a Realidade machuca é a Solidão quem abraça e apazigua. 
Imune ao Frio, ao Calor e ao Vento, minha prole não discrimina e embala todos os tipos de corpos: felizes, tristes, raivosos ou pacíficos. Alguns mortais não merecem o presente que é a Noite, mas não se aflija, criança! Aprecie, enquanto pode, a bela dança dessa que pari, mesmo sendo incapaz de escutar a melodia que a movimenta. Agarre-se, enquanto pode, à incorruptível companhia dessa que pari, mesmo sendo incapaz de retribuí-la à altura. Saiba, porém, que sua infelicidade não te torna especial, eleita: todas as pessoas da Terra já viveram a Noite e já sentiram a Solidão. Atrevo-me a dizer que é isso que os humaniza e recorda de que ainda estão vivos... Isso e essa pulsação insistente bem aí do lado esquerdo de suas caixas torácicas. 

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